Concorrente à Palma de Ouro em Cannes 2012, esta coprodução entre a França e o Brasil --apesar da produção executiva assinada pelo velho leão do cinema independente norte-americano, Francis Ford Coppola-- dividiu opiniões em sua passagem pelo festival francês, o que certamente acompanhará também sua trajetória nos cinemas.
Conduzido com a habitual perícia de Salles, que leva consigo o roteirista portorriquenho Jose Rivera e o diretor de fotografia francês Éric Gautier, seus parceiros em "Diários de Motocicleta" (2004), o filme encharca-se da melancolia que é o tom predominante do livro, narrando as memórias do escritor iniciante Sal Paradise --o alterego de Kerouac--, interpretado com intensidade na medida pelo ator britânico Sam Riley, o magnético intérprete do roqueiro Ian Curtis em "Control".
É toda construída de nostalgia, portanto, esta memória das aventuras juvenis na estrada de Sal e seu amigo Dean Moriarty, este, por sua vez, o alterego do escritor Neal Cassady, interpretado por Garrett Hedlund com uma voracidade que homenageia o jovem Marlon Brando, ator que chegou a ser pensado pelo próprio Kerouac para o papel, numa das muitas tentativas frustradas de adaptação para o cinema.
A tensão entre as diferenças profundas entre os dois personagens, unidos por uma mesma fome de vida, embalam uma vertiginosa troca de paisagens, de Nova York ao México, riscando na pele dos dois, e de vários companheiros de caronas pela estrada, um mapa de acontecimentos fortuitos. Como bebedeiras, canções, trabalhos eventuais, comida ruim ou nenhuma, a exposição às intempéries do clima, a camaradagem encontrada e logo perdida. E as mulheres.
KRISTEN STEWART E ALICE BRAGA
Personagens marginais no livro, as mulheres ocupam um pouco mais de espaço na tela. A principal é Marylou (Kristen Stewart, deixando "Crepúsculo" para trás), a primeira mulher de Dean, que se torna uma espécie de galvanizador entre ele e Sam, já que Dean insiste em que ela vá para a cama com o amigo.
Esta espécie de amoralidade, que também se espalha ao consumo de drogas, além de bebidas, é um lembrete de um tempo bem mais libertário e libertino do que os dias atuais, cristalizando uma espécie de utopia em busca de uma vida sem limites que a chegada da maturidade baliza para Sal, mas não para Dean, que sonha em viver sem compromissos para sempre.
A segunda mulher de Dean, Camille (Kirsten Dunst, vivendo personagem inspirada em Carolyn Cassady), é justamente essa "voz da razão" na vida dele. Mãe de seus dois filhos, ela sinaliza seu desejo de parada e estabilidade. Mas não é essa a natureza de Dean.
Alguns personagens à beira do caminho introduzem um sabor especial, que desenha melhor essa época. O maior deles é Old Bull Lee (Viggo Mortensen), uma espécie de guru junkie diretamente calcado na figura do escritor William S. Burroughs, o autor de "Almoço Nu" que era o mais velho do grupo beat e, ironicamente, apesar das viagens de todos os tipos que fez, foi o que morreu mais velho: 83 anos. Kerouac e Cassady morreram antes dos 50 anos; o poeta Allen Ginsberg (no filme representado pelo personagem Carlo Marx, interpretado por Tom Sturridge), com 71.
Pequenas e marcantes são, igualmente, as passagens de três outras atrizes: Amy Adams, como Jane, mulher de Old Bull Lee, e alterego de Joan Vollmer, a primeira mulher de Burroughs que ele matou acidentalmente com um tiro; Elisabeth Moss, como Galatea Dunkel, a jovem esposa abandonada pelo marido, Ed Dunkel (o estreante Danny Morgan), representando os personagens reais Al e Helen Hinkle; e a única brasileira do elenco, Alice Braga, como Terry, jovem mexicana com quem Sal tem um rápido caso quando colhe algodão na Califórnia e que evoca Bea Franco, que escreveu várias cartas a Kerouac, em 1947.
Steve Buscemi interpreta um homem que dá carona aos protagonistas e Terrence Howard (indicado ao Oscar por "Ritmo de um Sonho"), o jazzista Walter, traduzindo uma pegada mais jazzística do que roqueira na trilha sonora assinada pelo argentino Gustavo Santaolalla (outro parceiro de Salles em "Diários de Motocicleta").
Não se trata de um filme catártico, e sim de um grande mergulho na melancolia, na perda, na passagem do tempo e das paixões. A câmera se instala na pele dos personagens e não larga mais seu turbilhão, seu frenesi pela vida, sua pulsão pelo movimento, pela experiência direta.
"Na Estrada" realiza, assim, seu maior desafio: capta o aspecto fugaz do tempo presente, as relações humanas que se acendem e duram o instante de um fósforo, imperfeitas, passageiras, mas fundamentais.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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